
Plástico reciclado vira tênis com apoio de cooperativas no Brasil

Sob o sol escaldante na cooperativa de reciclagem ACAMTC, ao sul de São Paulo, em Três Corações, um grupo de trabalhadores da reciclagem — os catadores — preparava fardos de plástico descartado para transporte. Enquanto o grupo, formado majoritariamente por mulheres, trabalhava, falava com humildade sobre a importância do seu papel na preservação ambiental. “Sinto uma mistura de admiração e tristeza”, disse Evelini Castro Rocha, diretora financeira da Rede Sul e Sudoeste de Minas Gerais de cooperativas. “O trabalho dos catadores é essencial para a saúde do meio ambiente, e fico muito feliz em fazer parte disso.” Mas ela se preocupa com o fato de que esse trabalho ainda não recebe o reconhecimento que merece.
A dura realidade é que quase todos os calçados que já descartamos provavelmente ainda estão em algum aterro sanitário. Mais de 24 bilhões de pares de sapatos são produzidos globalmente todos os anos, e somente nos Estados Unidos, cerca de 300 milhões de pares são jogados fora anualmente. Com o avanço da moda rápida e campanhas de marketing focadas em novidade e consumo acelerado, as pessoas compram mais e mantêm os itens por menos tempo. Os calçados não fogem à regra, com coleções crescentes e pegadas de carbono igualmente significativas.
A indústria da moda e do vestuário depende fortemente de materiais derivados do petróleo, valorizados por sua durabilidade e versatilidade. O poliéster, por exemplo, domina como a fibra mais usada no mundo, com 71 milhões de toneladas produzidas em 2023, representando 57% da produção global de fibras. Do náilon ao acrílico, esses materiais sintéticos têm um alto custo climático: a produção têxtil com combustíveis fósseis impacta significativamente o meio ambiente, com uso excessivo de água, alto consumo energético, liberação de microplásticos e mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis gerados por ano. Esses resíduos não biodegradáveis permanecem por séculos em aterros, liberando gases de efeito estufa e substâncias tóxicas no solo e na água.
Cada vez mais marcas estão substituindo fibras virgens por alternativas recicladas de menor impacto — como o poliéster feito a partir de garrafas PET recicladas —, tentando minimizar os danos ambientais. Porém, mesmo recicladas, essas fibras ainda são sintéticas e carregam muitos dos mesmos impactos que suas versões originais. Uma cadeia de suprimentos centrada no upcycling, somada a iniciativas que evitem o descarte, pode reduzir parte desse impacto.
A marca de calçados sustentáveis Veja utiliza poliéster reciclado desde 2015, mas por muito tempo não conseguia rastrear a origem das garrafas PET. Isso não condizia com seu compromisso com a transparência. Por isso, nos últimos dois anos, a marca passou a liderar uma transformação.
Em 2023, a Veja firmou parceria com uma rede de catadores do Estado de Minas Gerais. Juntos, criaram uma cadeia de suprimentos 100% rastreável, feita a partir de poliéster pós-consumo. Desde a garrafa plástica descartada nas ruas até o tecido que reveste os calçados, a marca mostra como criar uma cadeia mais ética e transparente.
O Brasil é um dos países mais avançados do mundo na integração de catadores aos sistemas de gestão de resíduos sólidos. Os catadores mineiros fazem parte de uma rede com cerca de 200 pessoas — 60% mulheres — distribuídas em 13 cooperativas. Segundo a Veja, essas cooperativas respondem por cerca de 90% da reciclagem de materiais no país.
Usando exclusivamente garrafas dessa rede, a Veja comprou 6 milhões de garrafas PET em 2023. O contrato é regido por princípios de comércio justo, justiça social e impacto ambiental mínimo, e garante rastreabilidade total. Isso permite à marca produzir um calçado mais sustentável e, ao mesmo tempo, apoiar financeiramente os catadores. “Os catadores brasileiros têm um papel vital na nossa cadeia de PET. Sem eles, não teríamos o nível de transparência que buscamos”, afirma o cofundador da Veja, François-Ghislain Morillion. A empresa paga um bônus de US$ 1,20 por quilo, além do valor de mercado (entre US$ 0,52 e US$ 0,69), por cada quilo de garrafas plásticas transparentes.
Com isso, os catadores chegam a ganhar três a quatro vezes mais que o preço padrão, e os 6 milhões de garrafas renderam cerca de US$ 160 mil em bônus às cooperativas em 2023.
Maria Rosa, mãe de quatro filhos e trabalhadora na cooperativa Atremar em Três Pontas, considera o contrato com a Veja uma bênção que trouxe mais estabilidade financeira para sua família e valorização do seu trabalho. E como explica Evelini Castro Rocha: “Infelizmente, nossa profissão ainda é muito desvalorizada pela sociedade, pela falta de educação ambiental e pelo histórico de pouco reconhecimento às profissões ligadas à reciclagem.”
“Com nossa cadeia de suprimentos, estamos tentando combater algumas desigualdades do Brasil, criando um movimento social”, afirma Morillion. “No centro de tudo, estão as pessoas que carregam esses projetos nas costas.”
Depois de saírem da cooperativa, os fardos de garrafas vão para uma fábrica onde são lavados, triturados e transformados em pequenos pellets. É necessário remover contaminantes — como tampas, rótulos ou plásticos coloridos — para garantir a pureza do PET transparente. O resíduo líquido passa por tratamento de água para reutilização. Os pellets são fundidos em extrusoras, criando o material final.
Em seguida, começa a produção do tecido. Os pellets são tingidos com a técnica de tingimento a seco (sem uso de água), girados a 3.000 rotações por minuto até se tornarem fios flexíveis. Cada quilo do tecido reciclado final — chamado Eleva — utiliza cerca de 100 garrafas e economiza mais de 38 litros de água, segundo a fabricante Dini Têxtil. Esse tecido é usado como forro nos calçados da Veja.
Apesar da popularidade do poliéster reciclado (rPET), especialistas alertam que esse material não é a solução definitiva. Maxine Bédat, diretora do New Standard Institute e autora do livro Unraveled, explica que, quando empresas afirmam que estão “desviando garrafas do aterro”, é importante lembrar que quem faz isso é o consumidor, ao descartar corretamente a embalagem. A menos que a empresa participe da coleta, não deveria se apropriar desse mérito.
Além disso, ela alerta que transformar garrafas PET em roupas pode gerar mais resíduos, pois uma garrafa reciclada ainda pode virar outra garrafa — mas uma camiseta ou sapato dificilmente será reciclado novamente. Com a ascensão da moda descartável, o rPET pode acabar acelerando a ida desses materiais ao aterro.
O que realmente importa no impacto climático da moda não é só a fibra, mas como ela é processada nas fábricas, segundo Bédat. A fabricação têxtil é altamente intensiva em energia e responsável por grande parte das emissões do ciclo de vida de uma peça. “Se queremos reduzir emissões, não adianta focar só na circularidade e ignorar o processamento — que é o verdadeiro ponto crítico das emissões.”
Por isso, a Veja mede tudo. A empresa avalia suas emissões com foco especial no escopo 3, que inclui fornecedores, matérias-primas e transporte. Ao conhecer de perto suas fontes e parceiros, a marca consegue monitorar o impacto ambiental em consumo de água, energia e condições de trabalho, além de evitar fretes internacionais ao produzir tudo localmente.
“Preocupa-me que o setor veja a economia circular — incluindo o rPET — como uma carta branca”, diz Monica Buchan-Ng, do Centre for Sustainable Fashion. “As marcas continuam produzindo, agora com o argumento de que estão usando ‘resíduo’. Mas o problema real — a superprodução e o hiperconsumo — segue intocado.”
Segundo Buchan-Ng, a chave da circularidade real está na reciclagem têxtil para têxtil, que ainda representa apenas 2% do poliéster reciclado globalmente. No caso dos calçados, a combinação de materiais e processos como costura e colagem dificulta a reciclagem. Por isso, a alternativa está em prolongar a vida útil dos produtos.
A Veja acredita que o calçado mais sustentável é o que você já tem. Em 2020, lançou o projeto “Clean, Repair and Collect” (Limpar, Consertar e Coletar), com uma primeira oficina em Bordeaux, França. Hoje, conta com oito sapateiros em cidades como Berlim, Madri e Nova York, e já consertou cerca de 30 mil pares de tênis.
“É preciso que as marcas incentivem o uso prolongado das peças”, diz Buchan-Ng. “Em vez de campanhas voltadas ao consumo, elas deveriam promover relações mais duradouras com os produtos.” Para a Veja, o equilíbrio está entre durabilidade e propósito — porque não há sustentabilidade possível se o calçado não durar.
Enquanto isso, no Brasil, na cooperativa Ação Reciclar, em Poços de Caldas, dois trabalhadores abriram caixas de sapatos com um brilho nos olhos. Lá dentro, os tênis da Veja — feitos com o tecido reciclado que eles mesmos ajudaram a transformar em realidade.